Sabia que a 16 de janeiro comemora-se os oitocentos anos em que cinco frades franciscanos foram martirizados em Marrocos (Marraquexe), em 1220. São Francisco de Assis (c.1181-1226), antes de partir para a Terra Santa, em 1219, durante o capítulo geral da Ordem dos Frades Menores, incentivou os seus seguidores a difundirem a fé cristã no seio do Islão. Mesmo sabendo do perigo que essa campanha acarretaria, seis frades responderam positivamente. Foram eles: Vitale, que seguiu para Oriente, tendo ficado doente, não acompanhando, depois, os seus colegas, enquanto Berardo da Calvi, Ottone da Stroncone, Piero da Sangeminiani, Accursio da Aguzzo e Adjuto da Narni seguiram para Ocidente, para os reinos ibéricos. Os franciscanos, oriundos de Itália, passaram por Portugal, em 1219, antes de partirem para Marrocos, e foram acolhidos, em Coimbra, por D. Urraca de Castela (c.1186-1220), esposa de D. Afonso II (1185-1223), e em Alenquer por D. Sancha Sanches (c.1180-1229), irmã do rei, tendo apresentado os seus intentos de cristianizar os infiéis.
Fizeram um longo percurso, por terra ou por mar, saindo do Alentejo ou de Lisboa, alcançaram a cidade de Sevilha, sendo expulsos para Marrocos. Foram, depois, acompanhados pelo castelhano D. Pedro Fernandez de Castro até Ceuta, e daqui deslocaram-se até Marraquexe, numa distância de mais de 700 km, onde tiveram a hospitalidade do infante D. Pedro Sanches (de Portugal) (1187-1256), irmão do rei D. Afonso II (1185-1223). Muitas das relíquias destes cinco santos mártires foram depositadas no Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, devendo-se a recuperação destas relíquias franciscanas ao infante D. Pedro Sanches (de Portugal), que mandou guardar em ricas arcas, e cujos cadáveres tinham chegado a Portugal pela mão do companheiro D. Pedro Fernandez de Castro, castelhano. Também D. João Roberto, cónego de Santa Cruz, servindo o infante D. Pedro no norte de África, ajudou a recolher e a conservar os corpos dos mártires, que acompanhou até ao regresso à Península Ibérica.
Em Marrocos, os cinco franciscanos foram várias vezes presos e expulsos, sendo depois açoitados pelo povo, torturados em praça pública e obrigados a andarem sobre vidros, mas nada os demoveu das suas pregações. Foram, então, chamados à presença do miramolim (chefe), Abu-Jacob, que ainda os tentou com ofertas materiais, deleite da carne e devoção ao profeta Maomé, mas não sortindo efeito ordenou, então, a prisão dos franciscanos, fendendo-lhes os crânios com uma cimitarra (espada de lâmina curva)
e depois degolou-os, segundo Flávio Gonçalves («A representação artística dos “Mártires de Marrocos”: os mais antigos exemplares portugueses», 1963). Foi a sentença de morte por recusarem a crença ao Islão.
A história destes mártires, missionários franciscanos, sensibilizou e motivou Santo António de Lisboa (1195-1231) a ingressar na Ordem Franciscana, abandonando a Ordem Crúzia (Ordem de Santa Cruz de Coimbra ou Regra de Santo Agostinho de Hipona).
Na Madeira existem, pelo menos, duas pinturas, a óleo sobre tela, que representam os «Mártires de Marrocos». Uma das pinturas, hoje colocada sobre a porta da sacristia da Igreja do Colégio, junto ao altar do Bom Jesus, e possivelmente proveniente do demolido Convento de São Francisco do Funchal, é datável de inícios do século XVIII e de uma oficina regional. Representa os cinco frades, tonsurados e com hábito franciscano, castanho escuro e cordão, transportando cada um a sua palma do martírio. Dois frades seguram num livro fechado e têm, ingenuamente, cravado no peito uma espada, numa clara alusão à cimitarra, espada que os degolará. Estas figuras, um pouco hirtas e com fragilidades plásticas, estão longe das dramaticidades comuns deste tema. Em legenda, inscrita numa forma concheada, foram escritos os nomes dos frades, em latim, encontrando-se algumas letras descoloridas. A outra pintura, de menores dimensões, e mais recuada, do século XVII, é também de oficina regional e encontra-se no coro alto do Convento de Santa Clara. Muito danificada pela humidade e com perda de cromatismos, dificultando a leitura das figuras e paisagem, representa o momento em que os santos mártires são degolados por dois muçulmanos, identificados por um turbante. Dois frades franciscanos jazem no chão, enquanto outros dois, ainda de pé, oram, um com as mãos elevadas para o céu e o outro com as mãos sobre o peito, aguardam a sua fatídica morte. Anote-se nesta pintura uma exploração plástica tenebrista, de acentuada variação lumínica, de gosto barroco, tendo o seu autor alguma preocupação na representação dos rostos.
Esta devoção aos mártires de Marrocos é antiga na Madeira. Tomemos o exemplo do testamento das fundadoras da Capela de Mãe de Deus (Caniço), Isabel Álvares e Leonor Álvares, em 1536, que determinaram a feitura de dois retábulos para a sua ermida, sendo um de «São Francisco e Santo António com os cinco mártires de Marrocos», que não foi executado, sabendo-se que quem redigiu o testamento foi frei António de Buarcos, guardião do convento franciscano de Nossa Senhora da Piedade, em Santa Cruz, fundado, em 1518, por Urbano Lomelino, genovês, rico produtor e mercador de açúcar na Madeira.
A nível de escultura possui o Museu de Arte Sacra do Funchal seis imagens dos «Mártires de Marrocos” (MASF357), bustos-relicários, provenientes da Igreja do Colégio, mas cuja origem deverá ser o demolido Convento de São Francisco do Funchal.
«Mártires de Marrocos». Óleo sobre tela. Séc. XVIII. Oficina Regional. Igreja do Colégio. Foto: RR.
«Mártires de Marrocos». Óleo sobre tela. Séc. XVII. Oficina Regional. Coro Alto do Convento de Santa Clara. Foto: RR.
«Mártires de Marrocos». Bustos-Relicários. Museu de Arte Sacra do Funchal (MASF357) .Foto: Marla Castro
«Mártires de Marrocos». Tapeçaria. Oficina flamenga. c.1530-1540. Foto: Study Photographs of Tapestries in the Getty Research Library Photo Study Collection