Para assinalar o Dia Nacional do Azulejo, 6 de maio, a Casa-Museu Frederico de Freitas, convidou-nos a descobrir alguns painéis de azulejos que se encontram no centro do Funchal, forrando fachadas ou decorando interiores de estabelecimentos comerciais. Ao longo da semana, diariamente, foram assinalados diferentes revestimentos cerâmicos, que são parte integrante da herança artística da cidade, valores hoje tão escassos, mas que nos distinguem, orgulham e que nunca é demais alertar para a necessidade da sua valorização e preservação.
Estes exemplares, alguns de autor e outros de produção industrial, surgem integrados de forma mais ou menos vistosa no exterior dos edifícios ou marcam a diferença na decoração interior dos espaços que os acolhem. Sobrevivem e são essenciais para testemunhar a evolução urbana e revelar tendências e sensibilidades que marcaram a vida madeirense ao longo do século XX. Surpreenda-se ao virar da esquina. Reserve um pouco do seu tempo para parar e olhar, os azulejos estão lá para apreciar.
BARRA DE AZULEJOS DE FACHADA
Faiança, com estampilhagem e pintura manual
Fábrica de Louça de Sacavém, Portugal, ca. 1900-25
Edifício da Rua da Conceição 82 – Funchal
PAINEL DE AZULEJOS
Querubim Lapa (Portimão, 1925-Lisboa, 2016)
Fábrica Lusitânia, Lisboa, 1971
Centro Comercial da Sé
Rua Dr. António José de Almeida 4 - Funchal
Deixe-se levar pelas sensações inesperadas que suscita o universo marinho dos azulejos que revestem a parede interior do Centro Comercial da Sé. Mergulhe sem hesitar nos cambiantes de azul vibrante daquele mar de vagas ondulantes, esbranquiçadas à superfície e fundo repleto de seres vivos. Submersos, descobrem-se peixes, crustáceos, moluscos marinhos e algas verdes que se inclinam à mercê da corrente, presas às irregularidades das rochas de tons quentes e melados. Só um artista do gabarito de Querubim Lapa (Portimão, 1925-Lisboa, 2016), reconhecido pela sua componente de estética poética, poderia oferecer uma interpretação tão bela quanto original!
Este singular painel foi especialmente encomendado para valorizar a Cervejaria Coral, estabelecimento arrojado e moderno, alvo de um cuidado projeto de instalação do Arquiteto Raúl Chorão Ramalho (Fundão, 1914-Lisboa, 2002), o mesmo que pouco antes fora responsável pela adaptação a aparthotel de todo o imóvel, então designado edifício Guilloteau. Ocupando o rés-do-chão, a cervejaria foi concebida ao detalhe por Chorão Ramalho, que inclusive desenhou o próprio mobiliário com a colaboração do Escultor Amândio de Sousa (Funchal, 1934-Funchal, 2021) e se preocupou em escolher Querubim Lapa, à época um nome maior e de vanguarda do panorama artístico português, para intervir no espaço de forma marcante e decisiva. Este painel cerâmico, de vidrado inconfundível, assinado e datado “Querubim 71 Lisboa”, foi realizado na Fábrica Viúva Lamego, com a qual o artista colaborou de forma duradoura ao longo da sua carreira.
Quem imaginaria que este magnífico exemplar de autor, um pouco desvirtuado nos anos 80 na sequência das obras de adaptação do espaço a Centro Comercial, chegaria aos dias de hoje quase esquecido. É fundamental valorizar e zelar pelo que temos.
AZULEJOS DE FACHADA
Fábrica de Loiça de Sacavém, 1900-1925
Direção Regional do Trabalho
Rua João Gago 4 - Funchal
Não é caramelo salgado, mas até parece. A cor é tão apetecível como o doce. E apenas resta uma barra de 3 fiadas de azulejos, para atestar o revestimento original desta fachada.
São azulejos industriais, produzidos pela Fábrica de Loiça de Sacavém, no primeiro quartel do século 20. Realizados em pasta de pó pedra, com a decoração relevada, prensada mecanicamente e depois revestida a vidrado translúcido castanho-mel. O especial encanto destes revestimentos reside precisamente nas diferentes tonalidades da cor dos vidrados transparentes, as quais resultam das variações da espessura da respetiva camada, que se torna mais fina e clara onde o relevo é alto e espessa e intensa nas zonas baixas.
São azulejos seriados de padrão, unitário e repetitivo, de flor estilizada e pétalas dispostas em cruz ao redor de um núcleo quadrangular e com os 4 cantos decorados com elemento de ligação para formar florões secundários entre os módulos. Estão perfeitamente conjugados com o estreito friso, da mesma cor e técnica, ornamentado com motivos florais inscritos em cadeia de reservas ovais e quadrangulares intercaladas que remata o topo. Complementa o conjunto uma extensa barra de fundo branco e flores coloridas, a estampilha com retoques de pintura manual, que se estende coroando todo o piso térreo do edifício. Todo o revestimento é característico do período Arte Nova, da produção da Fábrica do Loiça de Sacavém e é coerente com os anos 20, período de construção atribuível ao edifício. Curiosamente, em 1923, neste n.º 4 (atual Direção Regional do Trabalho) funcionava a casa de bordados “German & Cie.” (de L. Boutitie e Sucessores) e o Correio e Telégrafo, no mesmo imóvel, mas na porta abaixo, n.º 2 (hoje o restaurante “O Calhau”).
A Arte Nova floresceu em Portugal e refletiu-se na azulejaria nacional através de composições arrojadas de linhas elegantes e cores vivas, inspiradas em formas movimentadas e na natureza. Azulejos de padronagem, frisos e barras enriqueceram imóveis por todo o país, revestindo as fachadas, pontuando frontões ou emoldurando portas, vitrinas e janelas. Que pena restar apenas esta insólita mostra do que teria sido um revestimento bem marcante da cidade. Mas não seria difícil devolver-lhe a dignidade, bastando para tal a retirada da cablagem danosa, intrusiva e a harmonização da pintura parietal para uma tonalidade clara, branca ou ocre, menos contrastante.
PAINEL DE AZULEJOS FIGURATIVO
António Quadros (Tondela, 1933-Tondela, 1994)
SECLA, ca. 1958
Casa do Bolo Caco
Rua Fernão de Ornelas 29 – Funchal
Quem sabe o que se passa com este casal? Desconhecemos quem são e o que representam. Mas podemos supor. Pela sua nudez, ar desconfiado e um quê comprometido dir-se-ia tratar-se de um Adão agachado, olhando de soslaio para a Eva que dominante exibe o fruto proibido, parcialmente devorado. A tentação venceu e nada augura de bom. A envolvente é escura, as plantas e a água que jorra à direita são ameaçadoras, de tons frios e formas flamejantes. E até as flores, que brotam esporádicas, são vermelhas e amarelas como as chamas. É impossível ficar indiferente a este conjunto de azulejos que, apesar das suas linhas estilizadas, está latente de emoções.
Ao fundo do estabelecimento, este painel forra um nicho cujos azulejos fogem do formato quadrado, normalizado, e são retângulos dispostos na horizontal na composição figurativa e assentes na vertical os acinzentados das paredes laterais, onde se dispõem alternados os de padrão liso e os geométricos com volumetria. Na base, ao modo de floreira, rematam a frente blocos vidrados nos mesmos matizes de cinza e que repetem, na face frontal, o esquema de padronagem já descrito.
Este original e invulgar revestimento foi encomendado para a loja de decorações de interiores “Decorama” (a funcionar desde 1958), pelo seu proprietário o empresário madeirense Comendador João Silvério Cayres. Porta ao lado, no número 31, este célebre antiquário abrira, em 1950, o seu primeiro estabelecimento de antiguidades “Arte Antiga”. Apostando numa vertente artística alternativa, a “Decorama” oferecia uma variada gama de objetos de arte moderna (pinturas, esculturas, mobiliário, vidros e cerâmicas), daí a escolha de um painel impactante e modernista condizente com o novo espaço comercial. Segundo indicação da Dra. Luíza Clode, antiga diretora do Museu de Arte Sacra do Funchal e dedicada investigadora na área da azulejaria madeirense, estes azulejos são da autoria de António Quadros, pelo que na falta de assinatura esta atribuição é a possível e provavelmente a correta. António Augusto de Melo Lucena e Quadros (Tondela, 1933-1994) era à época um artista emergente, estudante de Belas Artes e bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, mas que o escrutínio treinado do negociante de arte madeirense soube desde logo detetar. Este artista, que se revelou em áreas tão diversas como pintura, urbanismo, arquitetura, cenografia e escrita, foi também ceramista e entrou para a SECLA, em 1959. A Fábrica SECLA (Sociedade de Exportação e Cerâmica Limitada), nas Caldas da Rainha, tornou-se a partir dos anos 50 um dos polos mais ativos de produção e experimentação de artistas contemporâneos, pelo que é mais que provável que a encomenda deste painel tenha aí a sua origem. Para uma loja que se propunha vender cerâmica nacional, contemporânea e de autor, os contactos com esta fábrica seriam então inevitáveis.
PAINÉIS DE AZULEJOS “FLORISTA” E “FOLHAS DE BANANEIRA”
Hansi Staël (Budapeste, 1913 – Londres, 1961)
SECLA, Caldas da Rainha, 1957
Oculista Symphronio
Rua João Gago 14 - Funchal
Não é educado perguntar a idade às senhoras. Mas quem acredita que esta jovem florista já entrou na terceira idade? 68 Primaveras passaram e ela continua jovial e garrida, tão fresca como as suas flores. Um verdadeiro regalo para a vista!
Era no interior do antigo “Oculista Symphronio” que se podiam apreciar 2 painéis de azulejos de temas típicos da Madeira. A florista, de traje regional com a sua cesta transbordante de flores bem equilibrada à cabeça e a outra pousada a seus pés, mostrava-se em modo de postal turístico, numa rua calcetada do Funchal. Num plano secundário, não faltava o carro de bois a passar, frente a um prédio. A segunda composição era menor e exibia folhagem de bananeiras sobre um fundo de céu claro, de um dia ensolarado. Neste trabalho cativa a pincelada solta, a aparente simplicidade do traço e a escolha dos tons, coloridos e variados. Surpreende o recorte irregular de ambos os painéis e o pormenor de num deles ter sido usada, a par da pintura cerâmica tradicional, a ancestral técnica de aresta, que subtilmente dá relevo e conduz o olhar para as longas hastes das orquídeas que a vendedora segura na mão e para outras flores variadas que enchem a cesta. A composição original era mais ousada, pois o desenho libertava-se dos azulejos e continuava, fluido e sem contornos definidos, pintado na parede, completando o carro, mas sem a preocupação de incluir os bois. Solta, do lado oposto, outra pintura mural mostrava um apontamento de barcos de pesca, com as redes ao alto e palmeira, remetendo para a pitoresca baía Câmara de Lobos.
Tradição e modernidade. Esta duplicidade está aqui bem patente e é o atributo que melhor define Hansi Staël (Budapeste, 1913 – Londres, 1961) a autora que assina este inédito revestimento, datado de 1957. Nesse preciso ano a artista, residente em Portugal desde 1946, termina a sua estreita colaboração com a Fábrica SECLA (Sociedade de Exportação e Cerâmica, Lda.), cuja direção artística assumiu em 1954 e onde fundou o Estúdio SECLA, vocacionado para as vertentes de inovação estética e decorativa da produção.
Não foi possível apurar ainda quem, ou para que estabelecimento foram adquiridos estes painéis. Mas o imóvel, projeto do Arquiteto Raúl Chorão Ramalho (Fundão, 1914-Lisboa, 2002), estava concluído em 1955, pelo que é de supor ser também da sua autoria o arranjo interior do primeiro espaço comercial do rés-do-chão e quem sabe a sugestão da própria encomenda. Em 1967, funcionava aí a representação da Fábrica de Louça de Sacavém na Madeira, pelo que é pouco plausível a aquisição de azulejos criados por um ceramista associado a outra unidade fabril. Em 1968 para aí passou o “Oculista Symphronio”, mantendo-se aberto até este ano. O espaço atualmente encerrado deverá ter outra utilização, pelo que estes belíssimos azulejos não estão de momento acessíveis ao público. Mas neste caso e ao contrário do que reza o ditado, apesar da “jovem” florista estar longe da vista, não está longe do nosso coração.
AZULEJOS DE FACHADA
Gresval, Aveiro, ca. 1970-85
Rua do Carmo 80 A - Funchal
Atenção! Ao passar no troço final da Rua do Carmo, antes da ribeira de João Gomes, não se perca no labirinto de quadraturas infindáveis que reveste o rés do chão desta fachada de portas de vidro. Mas por alguns segundos deixe-se levar pelo efeito hipnotizante do padrão de quadrados concêntricos e observe a vivacidade inesperada das cores destes azulejos industriais.
Estes azulejos de grés, de padrão repetitivo e forte impacto visual, foram produzidos pela Gresval – Fábrica de Produtos de Grés S.A., fundada em 1970, em Águeda, Aveiro. O padrão unitário é formado por seis quadrados concêntricos de cores diferentes e alternadas, que vão do manganês, azul-cobalto, verde, turquesa, até ao cinza. Da repetição deste módulo resulta um efeito em quadrícula, valorizado pelo recurso a uma paleta de azuis e verdes mais vivos intercalada com os tons mais neutros e escuros. O brilho vítreo e translúcido acentua o contraste entre as cores escuras e claras, produzindo reflexos subtis da luz que iluminam e transformam a fachada.
Este tipo de revestimento insere-se numa fase de renovação estética da arquitetura portuguesa, marcada por uma maior abertura à modernidade e à integração de novos materiais industriais de construção em contextos urbanos. O azulejo passa a assumir um novo estatuto, afirmando-se como uma expressão privilegiada da cidade contemporânea, com possibilidades quase ilimitadas de experimentação e combinação de cores, texturas e técnicas. Este legado que já era limitado, é cada vez mais escasso nas ruas do Funchal.
AZULEJOS DE FACHADA
Fábrica de Lusitânia, Lisboa, ca. 1929-36
Rua do Bispo 36 A - Funchal
A publicidade não é coisa nova e é para se ver! Daí as letras garrafais desta fachada que gritam marca e artigos para venda. São azulejos publicitários da Companhia das Fábricas de Cerâmica Lusitânia, com sede em Lisboa e cuja representação no Funchal estava instalada precisamente neste edifício à Rua do Bispo. A inscrição, em letras de diferentes escalas e espessuras, pintada a azul sobre azulejos brancos, destaca o nome da empresa e anuncia os principais produtos da marca: louças domésticas, artigos sanitários, cerâmica de construção, como azulejos, telhas, tijolos, ladrilhos mosaicos e afins. De fácil leitura e forte impacto visual este tipo de revestimento era uma solução que associava funcionalidade, durabilidade e visibilidade, requisitos apetecíveis em suportes de propaganda.
Ao longo do século XX tornou-se prática comum o uso de painéis cerâmicos como meio de comunicação visual em fachadas de armazéns, fábricas e estabelecimentos. Funcionavam como autênticos cartazes de cerâmica: duradouros, resistentes e adaptados às exigências da rua. Para além da promoção de produtos, estas composições refletem o grafismo da época, a estética da publicidade e as dinâmicas comerciais das diversas cidades portuguesas.
Aplicado em data posterior a 1929, provavelmente nos primeiros anos da década de 30, este painel testemunha um período de expansão da Fábrica Lusitânia a nível nacional, uma fase em que a empresa adquiriu diversas unidades fabris e instalou centros de distribuição, depósitos e armazéns em várias cidades do país.
Bem sabia Artur Ribeiro o que queria dizer quando escreveu a letra do fado “De quem eu gosto nem às paredes confesso”, porque as paredes falam e esta revela de forma gritante quem um dia dela tão bem se aproveitou. A escassez deste tipo de manifestos que constituem prova de antigas utilizações de um imóvel, faz-nos pensar na pertinência da sua preservação e beneficiação de modo a continuarem a evocar diferentes etapas da nossa evolução comercial e urbana.
AZULEJOS DE FACHADA
Fábrica de Loiça de Sacavém, 1910-1930
Largo dos Varadouros 5 - Funchal
Que lindo verde! Tão fresco como o de um campo verdejante. Verde é esperança, vigor, natureza e juventude, quem não quer tudo isso? Ao dobrar a esquina da Praça para a Travessa dos Varadouros, espreite e não passe indiferente. Deixe-se levar pelas múltiplas sensações que despertam as diferentes tonalidades destes azulejos de uma só cor que, resistentes, sobrevivem neste recanto do Funchal.
São azulejos de padrão unitário e geométrico, composto por séries paralelas de hexágonos, alongados, debruados a pontilhado e que intercalam os de interior liso com os preenchidos com delicados enrolamentos afrontados. Realizados em pasta de pó de pedra, apresentam decoração em ligeiro relevo, prensada mecanicamente, o que resulta nos diferentes cambiantes de tom verde do vidrado transparente final. Para um efeito visual mais ritmado e subtil, estes azulejos deveriam estar assentes com o padrão alternado, de modo que as fiadas de hexágonos lisos e decorados não fossem coincidentes, mas esse foi um detalhe que o ladrilhador não respeitou.
Este é outro belo exemplo da série de azulejos Arte Nova, de produção industrial da Fábrica de Loiça de Sacavém, das décadas de 1910 e 1920. Padrões seriados deste tipo foram amplamente reproduzidos e difundidos em modelos monocromos (verde, castanho-mel, branco, entre outros), mas também nas suas versões policromas, ou seja, vidrados a mais do que uma cor. Vêem-se exemplos por todo o território nacional, sendo que na Madeira apenas se registam casos de aplicações pontuais.
Créditos: Casa-Museu Frederico de Freitas